Estaria o plano da Índia de construir 100 cidades inteligentes fadado ao fracasso?

A Missão Cidade Inteligente do governo indiano, lançada em 2015, prevê o desenvolvimento de cem "cidades inteligentes" até 2020 para apresentar soluções para a rápida urbanização do país; trinta cidades foram adicionadas à lista oficial na semana passada, levando o número total atual de iniciativas planejadas para noventa. A missão de US$ 7,5 bilhões abrange o desenvolvimento geral de infraestrutura básica — abastecimento de água, eletricidade, mobilidade urbana, habitação a preços acessíveis, saneamento, saúde e segurança — ao mesmo tempo que incluem "soluções inteligentes" baseadas em tecnologia para impulsionar o crescimento econômico e melhorar a qualidade de vida dos cidadãos nas cidades.

Em um país imerso em corrupção, a missão foi elogiada pelo uso transparente e inovador de um nacional "Desafio Municipal" para dar financiamento às melhores propostas dos órgãos municipais locais. Seu manifesto utópico e implementação, no entanto, são motivos de grande preocupação entre os planejadores urbanos e tomadores de decisão hoje, que questionam se a própria ideia de cidade inteligente indiana é inerentemente falha.

Mumbai. Imagem © usuário Wikimedia Deepak Gupta licença CC BY-SA 3.0

Em uma entrevista para a revista Indian Architect and Builder, o arquiteto indiano B V Doshi adverte que as "cidades inteligentes" do governo, em sua selvagem busca pela eficiência, destruirão a informalidade e a diversidade rural que são o pilar da sociedade do país. O urbanista baseado em Ahmedabad, Rajeev Kathpalia, concorda, dizendo: "Nossas cidades, em grande parte, não podem ser definidas como as cidades no Ocidente. O gado ainda é criado na cidade, então, que tipo de lugar é esse? Isso é uma cidade, é uma área rural ou algo intermediário?". Em resposta, ele sugere que a Índia precisa construir cidades inteligentes que respondam especificamente à sua cultura e às redes rurais.

Chandni Chowk, em Delhi, é caracterizada pela informalidade rural. Imagem © usuário Wikimedia Bahnfrend licença CC BY-SA 3.0

O projeto de estimação do primeiro-ministro indiano, no entanto, possui um imenso significado no contexto do crescimento populacional e da urbanização da Índia. A população do país deverá superar a China até 2024 e chegar a 1,5 bilhões até 2030; quarenta por cento deste número habitarão áreas urbanas, em vez de trinta e um por cento atualmente. As metrópoles da Índia, que já sofrem com a enorme pressão exercida por essa migração incessante, poderiam facilmente chegar ao caos urbano num futuro próximo. "Mudanças demográficas para a cidade são muito mais cáusticas e letais do que aquelas visíveis aos olhos. As cidades devem planejar uma Índia em movimento ou acabarão como favelas", adverte o arquiteto de Delhi, Gautam Bhatia, no The Times of India.

A população da Índia deve alcançar 1.5 bilhões de pessoas até 2030. Imagem © usuário Wikimedia Yann licença CC BY-SA 2.0

A Missão da Cidade Inteligente, no entanto, escolhe focar em meras 100 cidades em um país com mais de 4.000, e pretende criar um "modelo replicável que atuará como uma referências para outras cidades aspirantes". E aí está o seu defeito mais fundamental. "O problema com a noção de 'cidades inteligentes' é que ela determina a solução de um ambiente em uma única imagem, não levando em consideração a especificidade cultural", explica o urbanista de Mumbai, Rahul Mehrotra, em uma entrevista para o The Indian Express. "A única maneira de envolver as pessoas na construção da cidade é responder às necessidades e aspirações locais. Para ser socialmente relevante, as cidades têm que crescer para fora de suas raízes". Ele cita a restauração do passeio marítimo de Bandra, em Mumbai, e a renovação da Fundação Aga Khan de Hazrat Nizamuddin Basti em Delhi como fortes exemplos de iniciativas urbanas, observando que o desenvolvimento se torna problemático somente quando um modelo único é promovido como o exemplo ideal.

A margem do rio em Varanasi receberá uma transformação a partir da Missão. Image © Wikimedia user Unknown licensed under CC BY-SA 4.0

A missão tem dois principais componentes estratégicos: desenvolvimentos de áreas definidas e iniciativas 'Pan-City'. O primeiro tem como objetivo transformar os distritos existentes através de sua modernização e renovação, e desenvolver novas extensões das cidades a partir de novos empreendimentos; o último prevê a aplicação de "soluções inteligentes" adequadas à infraestrutura existente da cidade. A parte do financiamento federal, no entanto, está sendo canalizada para menos de três por cento das áreas da cidade. "Então você não vai ter 100 cidades inteligentes. Você vai ter 100 enclaves inteligentes dentro de cidades por todo o país", prevê Shivani Chaudhry, diretora executiva da Housing and Land Rights Network (HLRN), quando conversou com a Humanosphere.

A missão é, então, levar as cidades indianas à gentrificação? Os resultados de um estudo recente realizado pelo HLRN destacam a aparente falta de equidade social da missão e abuso dos direitos humanos: o governo indiano sustenta que a população local está sendo expulsa da cidade "para dar escolha para aqueles que vivem em miséria, viverem com dignidade". O escritor de Londres, Adam Greenfield, atacou esta débil retórica quando falou com a IMechE, afirmando que o projeto "dispensa completamente as necessidades do povo indiano — quando não simplesmente arrasa comunidades em nome do progresso". Residentes de favelas em pelo menos quatro das cidades selecionadas reportaram terem sido levados à força ou sofrido ameaças de despejo para darem lugar aos projetos de melhoria. "O que pode parecer o auge da construção urbana contemporânea nas apresentações e renderizações do governo é pouco mais do que um pretexto para erradicar os agricultores e pescadores pobres da terra e substituir suas aldeias por enclaves fechados e campos de golfe destinados a servir a elite", acrescenta Greenfield.

Desigualdade social em Mumbai. Imagem via Max Pixel (public domain)

Neste ponto, é imperativo perguntar por que as propostas dos organismos locais parecem cada vez mais estar servindo os caprichos dos atores do mercado imobiliário e da tecnologia. A resposta é simples: a implementação dos projetos no nível da cidade deve ser realizada sob a liderança de um Veículo de Propósito Especial (Special Purpose Vehicle - SPV) instituído especificamente para esse fim. Ao mesmo tempo que o veículo é composto por nomeados do governo e recebe substancial receita federal, é também livre para aumentar recursos adicionais do mercado; o setor privado poderia possuir uma participação minoritária no SPV. Os projetos, como corolários, poderiam ser executados através de parcerias público-privadas. Isso deixa a porta aberta para a horrível possibilidade de privatização da própria governança, juntamente com a falta de responsabilidade. Uma esmagadora maioria dos projetos aprovados parecem estar localizados em áreas já valorizadas das cidades, devido ao seu maior potencial de retorno sobre o investimento.

"A premissa da cidade inteligente como um modelo relevante para a Índia precisa de uma reavaliação fundamental, especialmente quando os lucros parecem prevalecer sobre as pessoas e a tecnologia sobre os direitos humanos", observa Chaudhry. Ela sugere que, ao invés de tentar mitigar os efeitos da urbanização de forma superficial, o governo deve procurar resolver suas causas estruturais — a crise agrária, a destruição rural, a reforma agrária falha e a migração forçada. Doshi acredita que o mundo não precisa viver em uma única torre de vários andares na era da internet e desafia a própria ideia de criar cidades se escolhas e oportunidades adequadas podem ser geradas nas áreas rurais. "Acho que a pressão da terra é realmente uma ilusão. Por que você deve estar perto o tempo todo de um milhão de pessoas?", ele questiona. Kathpalia insiste que devemos repensar o conceito de cidades como entidades centralizadas, e defende, ao invés disso, a concepção de assentamentos independentes e autossustentáveis em diferentes escalas, cada um completo por si só ou sindo em direção a sua completude.

A Índia rural tem um grande potencial para desenvolvimento. Imagem © usuário Flickr Yahoo licença CC BY 2.0

Ao mesmo tempo, Chaudhry tem consciência que é improvável que o governo reduza a missão, de apenas dois anos de idade. "Mas eu realmente sinto que ainda há tempo para conceber padrões, apresentar indicadores e ter uma visão alternativa proposta pelas próprias pessoas para garantir... um modelo de desenvolvimento equitativo", ela espera. E é aqui que ela é certeira — são as pessoas da maior democracia do mundo que irão determinar o futuro de suas cidades. A participação na tomada de decisões é a chave para fortalecer as comunidades locais contra as políticas injustas do governo, e do interesse das empresas privadas e seus interesses fiscais, quando eles percebem os benefícios que a tecnologia do século XXI tem para oferecer.

B V Doshi and Rajeev Kathpalia on the Idea of the Indian Smart City

Sobre este autor
Cita: Zishan Langar, Suneet. "Estaria o plano da Índia de construir 100 cidades inteligentes fadado ao fracasso?" [Is India's Plan to Build 100 Smart Cities Inherently Flawed?] 14 Mar 2018. ArchDaily Brasil. (Trad. Moreira Cavalcante, Lis) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/890486/estaria-o-plano-da-india-de-construir-100-cidades-inteligentes-fadado-ao-fracasso> ISSN 0719-8906

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